terça-feira, março 14, 2006

Só vê quem quer

Relativamente à noite de ontem, gostaria de poder dizer que tinha presenciado duas coisas que não contava alguma vez experienciar. Mas se o dissesse estaria a ser injusto para muitas pessoas que não o merecem.

A primeira surpresa foi assistir a um filme português com o qual fiquei francamente bem impressionado. E não seria verdadeiro se dissesse que não contava ver um filme português que me impressionasse, até porque já se fizeram muitos filmes portugueses muito bons. Mas se o fui ver era porque também me sentia minimamente cativado para tal e (por obra do marketing ou outro tipo de manobras sugestivas) por me sentir curioso com tal obra, afinal sempre teve honras de abertura do Fantas deste ano.
O filme - Coisa Ruim - encheu-me as medidas (sem transbordar por completo) ainda para mais num género pouco usual no nosso cinema - thriller. A construção do filme (argumento e fotografia) está a um nível diferente (mais agradável na minha visão) do que os nossos nos habituram na generalidade da nossa filmografia. Os desempenhos dos actores são bons*, mas isso não é nada de novo. Alguns clichés podem estar lá mais ou menos visíveis, mas haverá algum filme que os dispense? Até acho que foram aproveitados de forma inteligente.
Não me considerando um espectador muito exigente de cinema (gosto de filtrar o que vou ver, mas tudo o que vejo, assimilo sempre como mais uma visão da realidade, sem fazer grandes distinções a nível técnico, de desempenho, de edição, etc... claro que tenho opinião, mas não sou tão drástico como alguns amigos meus), mas no fim de contas posso dizer fiquei com uma boa impressão do filme.

A segunda surpresa foi, no final da sessão, ver o senhor da lanterna entrar na sala em direcção à primeira fila e ajudar um senhor a levantar-se e a sair. Nada de muito excepcional (passou-me pela cabeça que iria sair dali uma reprimenda qualquer, mas não notei nenhum comportamento estranho durante a sessão), até perceber que o espectador era uma pessoa invisual. Isto sim, não contava assistir, um cego no cinema. Tendo em conta que o filme se percebe bem pelos diálogos e sons (desconheço por completo os parâmetros mais importantes para um invisual assistir a um filme, se a lingua é um obstáculo - presumo que seja tanto como para um não-invisual) e que o enredo não se apoia em excesso de efeitos visuais, acho que o senhor terá assistido ao filme tal como eu. Talvez não tenha ficado com o coração apertado nas cenas em que a sugestão era meramente visual, mas, porventura, terá captado outras emoções que para mim são imperceptíveis.
Não podendo contar com os outros sentidos mais apurados que não desenvolvemos e que muito nos ajudariam, quão interessante poderá ser uma experiência de assistir a um filme de olhos vendados? Sem querer desrespeitar os invisuais, certo está, poderá ser uma pequeníssima amostra do que conseguimos ver sem os olhos.

Pensando bem, ainda tive outra surpresa que não contava já que viesse a acontecer. Mostraram o trailler de apresentação (sinal que irá estrear brevemente nas nossas salas) de um filme que já tinha perdido a esperança de o ver em circuito comercial. Já há mais de oito meses que vi num dos sites relacionados com o cinema em Portugal que iria estrear, sendo sempre empurrado para datas posteriores, até passar a estar sem data prevista de estreia. Mas o trailler de ontem devolveu-me a esperança de ver tão aguardado filme - Dare mo Shiranai, ou no título ocidental, Nobody Knows. Ver para crer!



* O que senti, e de novo, não gostaria de ser injusto para os possíveis visados, é que a nossa lingua falada (português falado por portugueses) não será a mais apelativa para o formato do cinema. Fiquei a pensar que os portugueses a actuarem na sua lingua, ficam muito melhor enquadrados num ambiente teatral que numa película de filme. Não sei se é por esta característica da nossa lingua que sinto mais facilidade em assistir a um filme falado em inglês, francês, castelhano, italiano, chinês, japonês, coreano, indiano, alemão, sueco, russo, brasileiro (entenda-se português falado por brasileiros), no fundo, qualquer outra lingua que não a nossa. Creio que a nossa lingua é especial, é uma lingua com um vasto leque fonético e de uma expressividade própria (se é que não têm todas?), que nos permite ter uma abordagem mais fácil a outras linguas, mas que não se torna no som mais consensual para ouvir num filme. É uma lingua mais dada a dramatismos, que são mais exacerbados nos palcos que nos filmes. Aí (diante das cameras) ficamos como que a meio tom, em surdina, ou berramos sem medida, não fazendo sentido aquela expressividade eloquoente que se utiliza e se adequa tão bem aos teatros. Não condeno por isso o cinema português, mas confesso que a minha facilidade de entrar no filme esbarra um pouco na utilização que a nossa lingua tem.

7 comentários:

sara cacao disse...

:)

Sabes, tenho um amigo invisual cinéfilo, deve ir ao cinema mais vezes que eu! :)

Quanto à produção nacional está um razoável bom com letra GRANDE, sim senhor!

Duarte disse...

Pois, para mim foi um first! Mas foi uma agradável surpresa saber que pessoas sem capacidade fisica de ver disfrutam do cinema.
E hoje contei aqui no trabalho o episódio e responderam-me logo com outras histórias que presenciaram na semana passada nas idas à neve. Invisuais a praticar ski! Será tão ou mais espantoso que invisuais no cinema. Mas mostra-nos a alegria de viver de muitas pessoas!

sara cacao disse...

No Ski nunca tinha ouvido falar, mas parece-me fabuloso a quebra de barreiras arquitetónicas... Fantástico mesmo. Fico muito feliz!

sara cacao disse...

Errata: deve ler-se arquitectónicas... ;p

Tiago disse...

Não viste o "Alice"...?

Duarte disse...

Vi, mas fui para lá com as expectativas demasiado elevadas e depois não fiquei tão surpreso como contava. Acho que o trailer prometia imenso, todo o aparato em volta do filme idem, fiquei fã do filme antes do o ver e a pensar que era algo de completamente inovador para o nosso cinema. Quando finalmente o vi, de facto achei que o filme estava muito bom, que inovava em muitos aspectos mas que continuava preso a certas coisas tão próprias dos nossos filmes. Se calhar os 'pesos' que o prendiam tinham a ver com a temática do filme, as fiquei com a ideia que algo me tinha defraudado as expectativas (se calhar estavam altas demais...).

sara cacao disse...

Não vi o Alice, queria ter ido, mas quando dei por ela já não estava em cena. Que 'cena'!!!