sábado, novembro 11, 2006

Memórias e Emoções

I.
Há coisas que nunca voltam a ser como eram. Aliás, nada volta a ser como dantes, o sentido único que o tempo percorre não o permite. A única coisa que nos faz pensar nisso e que nos faz ambicionar com um regresso ao passado são as boas memórias que guardamos desses momentos. Há muita coisa que me faz pensar com saudades de momentos passados. Não sei se é sorte, se há pessoas que não podem dizer o mesmo, mas acho que guardo muitas lembranças felizes, alegres ou agradáveis dos tempos idos e ponho-me a pensar que possivelmente há coisas que devem estar indefinidamente escondidas no baú das memórias, as quais não conseguirei resgatar para o presente e com elas revisitar tudo o que vivi. Será por já me lembrar de muitas outras, será por não serem tão marcantes como as que recordo? Não sei se alguma destas hipóteses é verdadeira, se ambas o são ou se as duas não passam de especulações. Mas sei que o que presentemente disponho para recordar o que já foi é simultaneamente uma ferramenta de alegria, saudade e nostalgia. E que com o rebuscar e o relembrar de umas, outras se vão mostrando, aparecendo discretamente, com uma ponta visível a pedir para serem puxadas e expostas, tal qual um monte de velhas fotografias enfiadas numa gaveta esquecida, que quando começamos a remexer, se vão mostrando, revelando o que já fundo se tinha instalado na memória.
O lápis com que vou escrevendo isto é um objecto que me lembro de ter comigo desde que tenho memória, desde que me lembro de o ter guardado na caixa onde ainda há pouco fui procurar por outro lápis que não este, um que também já vem desde sempre, que tinha a particularidade de ter o carvão revestido com uma massa que, quando humedecida, deixava os riscos com um traço rôxo. As folhas onde o lápis escreve isto estão soltas. Sei que são de um caderno que tive na escola primária, que entretanto desfiz para guardar o que me interessava manter e aproveitei para reservar estas folhas em branco para mais tarde utilizar. Só com o acto de ir buscar tudo isto para aqui estar a escrever já me fez reencontrar muitas memórias que já não seriam facilmente resgatadas. Mas também não precisava de escrever isto do lápis e das folhas, porque quando voltasse a ler isto identificaria as folhas como sendo desse velho caderno e lembrar-me-ia do velho lápis que utilizei.
Já me dói o dedo de escrever. O hábito de usar outros suportes de escrita que não exigem usar um lápis ou uma caneta, juntamente com a falta de hábito de não pegar num lápis, acostumaram os dedos a ter outras acções e outras inter-acções com o suporte usado. E similarmente, os músculos do braço já começaram também a ressentir-se. Poder-se-á chamar a isto evolução? Daqui a quanto tempo deixará o nosso corpo de conseguir transmitir o que pensamos como o aprendemos a fazer? Daqui a quantos anos já não conseguirei escrever um texto com papel e lápis, só estando apto a o fazer com um teclado ou quem sabe, com um aparelho que me leia os pensamentos e os registe automaticamente sem que eu desenvolva qualquer esforço para além de pensar? E quando é que deixarei de precisar de pensar, de sequer ter de me esforçar para pensar, quando algo fará tudo por mim? Será que aí me vão estar disponíveis as minhas memórias? Ser-me-ão mostradas numa espécia de filme que foi compilado para eu relembrar o que possivelmente vivi? Essas lembranças são minhas, não devem ser de algo exterior a mim para me as disponibilizar de acordo com uma vontade que me seja alheia.
Já que as coisas boas que tivémos não podem voltar a ser e a acontecer, quero ter a capacidade de as poder explorar, vasculhar, remexer e redescobrir. Quero poder, no futuro, quando muito mais se tiver passado, ir evocá-las, alegrar-me por ainda as ter, voltar a conhecer-me como já fui outrora, saber que o que passou foi algo que mereça ser lembrado e revivido, nem que seja apenas em pensamento.
Hoje em dia, e no futuro cada vez mais, há coisas que fazia antes mas que já não posso fazer, não necessariamente por imposição mas também pela evolução e pela mudança que sofremos. Mas tendo a sua memória posso refazê-las mentalmente, tirar partido e gozo delas e do que elas me fizeram sentir da primeira vez e da cada uma das vezes que me consigo lembrar de o ter feito.
II.
Hoje em dia já não choro. Fará parte da evolução, do crescimento? Mas a verdade é que sinto certa falta de o poder fazer como fazia quando era mais novo. Se calhar gastei todos os cartuchos nessa altura e agora já não tenha mais lágrimas para chorar. Não creio que seja perda de sensibilidade, acho que posso estar tão ou mais sensível do que era antes, mas a forma de o exteriorizar já não consegue ser a mesma. Quando era mais pequeno chorava mais por dor emocional que por dor física. Era a forma de extravazar as emoçõese por vezes o nervosismo. Hoje sinto falta de poder ou de conseguir fazê-lo da mesma forma para certas situações. As emoções prevalecem, são até mais intensas, mas as lágrimas não saem quando deviam. E quando antes o fazia, sentia nisso um escape de certa forma. Agora o escape é capaz de ser mais racional - pensar sobre o assunto - mas não é necessariamente mais eficiente ou benéfico. Posso sempre usar as memórias para me lembrar ou para reviver, mas gostava de efectivamente o fazer quando tal fizesse sentido ou fosse necessário, como dantes. As lágrimas que choramos para dentro não nos libertam tanto como as que nos caem dos olhos pela face abaixo, que nos chegam salgadas aos lábios e á lingua, que nos deixam os olhos vermelhos e inchados... curiosamente já conseguia não ficar com os olhos muito inchados ao chorar. O truque é não esfregar os olhos ou limpá-los com as mãos; deixar as lágrimas escorrerem livremente e esperar que os olhos sequem naturalmente sem qualquer acção sobre eles. E chorar sem limpar as lágrimas era ainda mais libertador (não sei se puro?) e era um escape ainda maior. Não sei se tudo isto se relaciona de alguma maneira com o prazer que me dá sentir a chuva caír em mim sem que eu tente evitá-la ou proteger-me? Mas de facto ambas as situações são, cada uma á sua maneira e no seu contexto, escapes bastante satisfatórios para certas revoluções emocionais.

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