terça-feira, maio 13, 2008

Olho de Falcão

Hoje de manhã, a caminho do trabalho, conduzindo na via rápida, vejo um pequeno corpo em cima do traço contínuo que separa a via da esquerda da berma esquerda e do separador central. Poderia ser um papel, um saco, um animal morto, uma pedra... não era perceptível à distância a que inicialmente o avistei. Conforme ia naturalmente avançando na sua direcção, comecei a ganhar noção das suas proporções, formas e cores. Percebi que ganhava uma postura vertical, bastante estável e não influenciada pelos vários automóveis que por ele passaram. Um pouco mais perto e percebi que era um pássaro, vivo, de pé. Quando por ele passei tentei perceber exactamente o que era. Não posso estar cem por cento certo; a minha primeira ideia foi que se tratava de um mocho, até porque parecia que a cabeça estava virada de lado para o separador central (estando o corpo virado de frente para os carros que, como eu, seguiam nessa faixa), mas o seu tamanho pareceu-me demasiado pequeno para o que conheço dos mochos. As penas de tom castanho, mais ou menos escuras, e a dimensão do corpo e da cabeça, bem como a imagem que ficou do instante que consegui focá-lo, deixaram-me a pensar que seria um falcão. Sendo uma via rápida, não seria seguro abrandar muito (especialmente estando na faixa da esquerda), pelo que mantive uma velocidade constante antes, durante e depois passar por ele. Vi-o por breves segundos, contados ao ritmo do velocímetro, mas a sua imagem e a sua presença ficou-me presa na retina e na cabeça por vários minutos. Não só pela situação bizarra, mas principalmente pela postura que o pássaro mantinha: perfeitamente estático, de pé, de olhar no separador central quando lhe surgiam de frente dezenas de automóveis ruidosos a velocidades significativas, traçando tangentes mais ou menos chegadas. Parecia que nem uma pena se mexia, no entanto era perceptível que estava vivo. O que estaria ele ali a fazer? Como terá ido lá parar? Porque parecia tão indiferente a tudo o quanto se passava em seu redor? Seria capaz de sair dali sem mazelas? Eu não poderia ter feito nada para influenciar o desenrolar da sua situação, apenas o que fiz me garante que em nada o afectei - continuei a andar normalmente, sem ser demasiado curioso para que a tangente não fosse perto demais. Mas será que um outro condutor não se desviaria um pouco demais para cima dele? Será que, dada a sua aparente alienação, poderia levantar voo se tal acontecesse?

Fascinou-me o animal, fascinou-me a situação. Cruzam-se nos nossos caminhos coisas que não esperamos, que mexem com os nossos instintos e podem provocar as mais variadas reacções. Coisas que nos fascinam, que nos chamam para tentarmos entende-las melhor, desfrutar delas mais um pouco, mas talvez nem sempre seja essa a melhor coisa a fazer; há certas situações que temos de nos contentar por passar por elas e por nos darmos por felizes por termos continuado o nosso trajecto sem interferir com elas, garantindo assim que não lhes provocaríamos qualquer prejuízo, esperando que após a nossa passagem, tudo corra bem para que o seu percurso possa também continuar sem interrupções bruscas.

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